quinta-feira, 31 de julho de 2008

"What a jagged little pill"

Quanto mais fixamente olhava, mais sua cabeça doía. Lá estava a tinta, o caderno e a pena, só precisava de coragem para ficar lúcida de novo. Nunca gostou de tomar comprimidos e toda vez que sentia alguma dor, simplesmente sentia e esperava a vida tratar de levar embora depois. Era como se tivesse nascido para sentir e se recusasse a cortar qualquer sentimento, qualquer sensação. Por mais penoso que fosse, às vezes, não abria mão de degustar cada dor, cada amor, cada ilusão e conseqüente desilusão. Havia momentos em que ela não queria nenhuma dose de realidade, não queria deixar de ter ilusões.
Lidava com a dor com maestria.
Mastigava o comprimido em vez de engoli-lo inteiro; lembrava-se da infância, quando, pela primeira vez, precisou tomar Dramin. Ingênua! Triturara impiedosamente o comprimido com os dentes, como se fosse uma bala, e sentira o amargo necessário para evitar o mal posterior. O enjôo de uma longa viagem. Era melhor que tomasse um comprimido e adormecesse até o destino, mas ela nunca dormia. Queria observar tudo atentamente e sentir o que fosse preciso sentir para isso. A viagem toda se passava; ela com o sabor amargo que uma azeitona fora incapaz de abrandar e com uma avidez que o comprimido fora incapaz de abater. Era só engolir. “Abrir a boca e fechar os olhos”; mas só aprenderia isso mais tarde. E ela preferia enfrentar as conseqüências da escolha. Queria não tomar o comprimido para ver o que acontecia, mas para isso precisava se sentir preparada.
A sensação era de que tomando aquilo, o enjôo era muito maior, mas não estava segura para correr o risco implicado em não tomá-lo. Seguiram-se quinze anos e ela, sem conseguir engolir de uma vez, mastigava o comprimido. Tentara até ludibriar o amargo mastigando o comprimido junto a uma barra de chocolate, mas era muito pior. O sabor contaminava o chocolate todo. Simplesmente porque não sabia a melhor maneira de ingeri-lo, acabava sofrendo por tentar evitar o sofrimento. Isso não fazia sentido para ela.
Agora, depois de tanto tempo, se recusava a tomar um mísero comprimido para curar uma dor de cabeça que lhe permitiria escrever. Era de uma teimosia sem tamanho.
"Melhor sentir do que tentar remediar". E não era pra ser remediável. Porque não achava justo que uma dor de cabeça se curasse com um comprimido, e uma dor de amor ou de saudade não. Inútil querer definir, a dor aumentaria e a dúvida também. Precisava sentir a dor da qual tinha direito. Sentir e esgotar tudo que havia para sentir dela. Estava disposta a ir até o fim e enfrentar as conseqüências. “Não quero me dopar com isso, preciso sentir para crer que estou vivendo plenamente”.
Sentiu... com o mais intenso desejo que a dor se esgotasse. E ainda sente, ainda não chegou nas últimas conseqüências. Talvez ela não estivesse preparada.
A dor se tornara latente e a tinta, seca.
"Será que é mesmo necessário ir até as últimas conseqüências?", se perguntava sempre.
E precisava mesmo do comprimido para sentir a realidade?

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Sala de espera

-Você acredita em destino?
-Não, por quê?
-É porque às vezes eu fico pensando em tudo que a gente vivencia e é impossível não pensar que não tem sentido.
-As coisas são mais fáceis para aqueles que acreditam em destino. Se alguma coisa não aconteceu, enchem logo a boca pra dizer “é porque não tinha de ser”, e pronto. São uns conformados e acomodados.
-Mas você não passa por várias coincidências que te levam a pensar que aquilo tudo vai dar em um ponto predeterminado? Por exemplo, aquela sua amiga. Você nunca parou pra pensar que talvez você esteja destinado a ficar com ela; que por mais que você se envolva com outras mulheres, e por mais que ela se envolva com outros homens, vocês acabam sempre sozinhos. Sempre conversando durante horas sobre o que significa amar uma pessoa.
-Isso é uma grande bobagem. Acreditar em destino... Você vive sua vida inteira como se folheasse uma revista de fofoca enquanto espera para ser atendido num consultório odontológico.
-É, tem razão.
-E o pior, você não percebe que no fundo está vivendo uma grande espera. Uma tortura, igual a essa que o motorzinho do dentista provoca, mas enquanto está de fora não percebe porque está distraído. É isso: uma verdadeira distração.. Por mais que viva o presente, sua expectativa está toda naquele destino que não chega. Aí você deixa um monte de coisa passar, por distração. E seu destino muda sem que você saiba ou perceba. É esperar por uma coisa que não se tem certeza que vai acontecer.
- ...
-Se existe mesmo essa coisa de destino, tenha certeza que ele muda a cada minuto. E esperar por algo que você acredita lhe ser destinado é uma tremenda estupidez.


-Próximo?

terça-feira, 29 de abril de 2008

Será?

Como explicar aquele momento, sentado no meio fio esperando o ônibus passar? Aquela vontade alucinante de simplesmente olhar para ela? E depois de olhar, sorrir aquele sorriso que deixa escapar uma brechinha dos dentes. Dar um gole na água e depois olhar para ela novamente, e assim permanecer por alguns segundos, longos segundos. Como explicar o que sentia? Poderia dizer que era saudade de uma coisa não vivida, uma ânsia, um desespero, uma fome de viver aquilo que ainda não vivera. Uma esperança. Um suspiro para adoçar o beijo iminente. E mais um sorriso.

domingo, 23 de março de 2008

...

Começara a ler um livro que se iniciava com nada mais, nada menos que uma vírgula. E descobrira sem querer que ele terminava com dois pontos... E, incrível, o ponto final era raríssimo. Às vezes nem antes dos parágrafos eles apareciam. Aquilo era fascinante, porque ela sentia uma ligação incrível com as palavras. Eram contínuas, flexíveis. As vírgulas substituíam os pontos finais sem pudor, e funcionava.
Ela escolhia o ponto que seria final. E foi assim nas três primeiras páginas de narração. Sequer um ponto final. Tinha, para ela, uma força gravitacional, por assim dizer. Era difícil, mas usá-lo significava se dispor a recomeçar um novo período e ver mais além. Começar algo que direcionava para outro ponto, por que não dizer mudar de foco?
Mas ela queria pontuar as coisas para ter a sensação de que havia terminado de fazê-las. Ela queria aprender a arte de pôr pontos finais, em discussões e em sentimentos. E, principalmente, queria saber usar o ponto final em seus discursos amorosos. Simplesmente pôr um ponto final e fechar o caderno.
Tinha uma mania incorrigível de terminar suas frases com reticências. Não era uma pessoa reticente, mas tudo que vinha dela soava reticente. No meio das frases raramente usava um ponto final; recorria ao impreciso ponto-e-vírgula, que não era nem tão breve quanto uma vírgula, nem tão definitivo quanto um ponto final. O vacilante ponto-e-vírgula. Denunciava a insegurança de quem optava por ele.
E o que fazer com o granítico ponto final? Como era difícil usar isso! E achava que as pessoas usavam errado. Sempre dizia que no lugar daquele ponto final cabia melhor um ponto-e-vírgula. Não conseguia empregar o ponto e ainda queria que o discurso alheio ficasse flutuante como o dela.
Ela queria ser pontual, queria fazer com exatidão ou no tempo preciso em que se combinou fazer. Sim, porque essa era a definição de “pontual” que o dicionário dera a ela. E era exatamente disso que ela precisava. Precisão.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Uma flor


Havia uma casa não muito espaçosa, mas com um jardim relativamente grande. Sua mãe, Dona Glória, cuidava de cada flor como se tivessem saído, uma por uma, de si. Sabia o nome de todas as flores e plantas que habitavam aquele jardim. Todos os dias ela se levantava bem cedo, tomava seu café e logo após se trocar, antes mesmo de arrumar a casa, ia cuidar de seu jardim.

Era quase meados de setembro e a primavera já queria chegar. Pablo estava aproveitando um feriado prolongado e sentia falta de sua namorada. Dona Glória, como de costume, caminhava até seu jardim quando se deparou com uma flor lilás, linda. Desde então se dedicou a procurar saber o nome daquela flor.


Ele, todas as vezes que queria uma mudinha dela, precisava se empenhar bastante com sua mãe. Ela tinha um ciúme danado de suas plantas. Tinha branca e lilás daquela nova flor.

Ele sabia que sua namorada adorava lilás e por isso sempre escolhia essa cor. Às vezes levava uma branca com a desculpa de que era para variar, mas a verdade era que não tinha dado tempo de florescer mais da lilás. Mas ela não ligava. Quando lhe era perguntado onde conseguia aquelas flores tão lindas, ele respondia brincando que sua saudade era tanta que mal cabia no peito, por isso brotava no jardim da sua casa.

Logo Dona Glória e parte do seu jardim se encheram de saudade.

A cor lilás parecia perfeita para caracterizar aquilo que sempre sentia. Desde que recebera uma flor dessa cor, da família das Dipsacáceas, a saudade que sentia tinha a cor lilás. E só o fato de ela conseguir dar uma cor ao que sentia era motivo de um suspiro de alegria mansa. E por coincidência a flor também era conhecida como suspiro.

E agora, cinco anos depois, lá estava a mulher, diante de uma antiga saudade. Estava esquecida e presa em um pequeno saco plástico e amassada pelas numerosas páginas do seu caderno. Completamente sem cor e sem vida.

Aquela saudade que só fazia cócegas, que vinha como uma brisa fresca, mantinha-se viva no dia-a-dia, principalmente à noite, quando eles iam dormir, cada u mem sua casa.

Ela guardara a primeira de todas em seu caderno, a título de recordação. As outras ela colocava na água, na esperança de prolongar um pouco mais sua beleza lilás, ou branca. Assim que uma começava a murchar e perder suas pétalas, ele logo a presenteava com outra. E elas pareciam cada vez mais radiantes, as flores e a mulher. Gostava de manter a saudade viva.

A natureza, porém, o surpreendera. Por algum motivo que ele desconhecia, em certa manhã não havia mais saudade. Ela não entendia, mas ele não tinha culpa. Ele também se sentia mal. Apareceu então com outra flor, mas não era a mesma coisa. Nem lilás era! Além de se enganar, tentava enganá-la, mas as coisas não eram mais como antes. A natureza humana tem dessas coisas.

O desenho que suas folhas e pétalas secas faziam no papel era perfeito, vários farelos de saudade permaneciam unidos, imóveis. Uma união extremamente frágil, inacreditável; sabia que se tentasse tirar o que sobrara dali, perderia tudo. E ela nem pretendia fazer isso, mas pensara no que poderia acontecer. Pensava no que poderia ter acontecido se a saudade não tivesse acabado de um dia para o outro. Não tinha mais a cor vibrante de quando a recebera, representava a mesma coisa, mas em um contexto bem mais solitário e fúnebre.


Era eterna e estava morta, mas agora ela entendia.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Sabe aquele?


Suspirou. E ele tinha uma mania crônica de suspirar.

Seu jeito de falar carregava a serenidade e a lassitude de um homem de setenta anos. Suas palavras, muitas vezes balbuciadas, caminhavam com uniforme vagareza; suas frases saíam sempre vagas e até mesmo entediantes. Eram frases vacilantes. E o jeito de falar era de quem parecia medir milimetricamente o que dizer. Parecia pensar com cuidado, em cada pausa que fazia, qual seria a palavra seguinte e, quando não a encontrava, suspirava. Na maioria das vezes, mesmo sem saber como dizer, sabia o que seria dito em seguida se ele não parasse. Justamente por isso, parava. Inspirava o ar profundamente e soltava, como que aliviado. Mas não era propriamente um suspiro de alívio. Parecia cansado. Essa pausa para o suspiro normalmente dava abertura para que os outros dissessem algo ou tentassem completar seu raciocínio. E era assim toda vez que eles se encontravam e ficavam conversando por algumas horas. Acontecia também de não se ouvir nada; ficavam então em silêncio por um curtíssimo espaço de tempo. Entreolhavam-se e sorriam como se estivessem sem graça, mas não estavam. Tinham plena consciência do que acabara de acontecer.

Às vezes ele estava dissertando sobre alguma coisa diretamente relacionada com o que sentia. E numa das breves pausas que fazia entre as palavras, suspirava. Talvez quisesse ganhar tempo para conseguir prosseguir sem ter que dizer aquilo que sentia, algo que buscava desesperadamente um modo de sair. Ele aprisionava seus anseios e sentimentos mais profundos em um suspiro. E fazia isso várias vezes.

Com o tempo, apenas um suspiro não foi mais capaz de comportar tudo que durante anos ele tentara preservar inviolável. O que realmente sentia ou queria dizer estava protegido pelo que ele pensava ser uma fortaleza indevassável, mas, na verdade, a fragilidade de tal “fortaleza” era equiparável a de um frasco de porcelana. Qualquer movimento desajeitado -e ele fazia muitos movimentos desajeitados- poderia provocar um esbarrão no frasco e quebrar tudo.

Ele sabia que era preciso falar.

Quando saem, os sentimentos assumem outra forma: a forma que o outro vê e percebe. Uma vez fora de si, a pessoa passa então a ter a possibilidade de ver e perceber como o outro vê e percebe aquilo que é ele mesmo. Por isso escrever tem o poder que tem, porque logo após as palavras escritas, qualquer pessoa que lê, ainda que seja quem as escreveu, lê na condição de uma terceira pessoa e consegue olhar de fora para si mesmo. Ela consegue ver como os outros estão vendo o que ela diz sentir. O problema é que ele não tinha muito jeito com as palavras escritas, nunca teve. Talvez por isso não chegasse nem perto de sentir plenitude no que escrevia e achava melhor falar, ainda que com inúmeras pausas.

Não precisava esconder tanto, pelo menos não de todo mundo. Não dela. Muito menos de si. Ela talvez fosse a pessoa que melhor entendesse o que havia por traz daquele suspiro. E ele... ele talvez não tivesse conhecimento do que aprisionava dentro de si. De nenhum outro modo aquilo que ele reprimia fora externado. Essa era a questão.

A não mais existência daquele suspiro representaria a queda de um muro que separava a realidade do mundo da sua realidade, e também aumentaria sua percepção de si mesmo. E foi numa tarde dessas de verão que ele disse:

– Sabe aquele suspiro?

Ela acenou que sim com a cabeça.

– Então, estou disposto a não tê-lo mais com você.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Mero incidente corriqueiro

Helena finalmente se sentia diferente. Talvez agora ela pudesse dizer palavra por palavra o que estava sentindo. Pela primeira vez ela podia se acometer do pecado de dizer a verdade. Levantou-se e parou em frente ao espelho. Encarou a imagem durante alguns segundos. O olhar parecia perfurar a pele e lhe injetar doses quase fatais de realidade. Talvez por isso seus olhos se enchessem de lágrima, involuntariamente. Como quando batemos o dedo mindinho numa quina qualquer e nossos olhos se afogam repentinamente, mas por um instante ínfimo. A gravidade não foi o bastante e a lágrima, relutante, preferiu secar. Era uma lágrima de dor latente. Mas até mesmo a dor pode ser prazerosa às vezes, e até mesmo o prazer poder ser doloroso. Era o caso. Há muito seu prazer doía, como uma ressaca diária acompanhada de uma vontade de colocar para fora tudo de ruim que alguma vez ela pensara ter lhe feito bem. E como era enjoativo aquele negócio... Tentou parar de beber várias vezes.

Agora ela segurava o espelho com firmeza. Era um espelho quadrangular grande, daqueles antigos de pendurar na parede, e possuía algumas marcas deixadas pelo tempo. Às vezes Helena parecia se incomodar consigo mesma; seu próprio olhar instigava, como se ele fizesse uma denúncia gravíssima que ela se recusava a ouvir, mas via. Um olhar capaz de chegar a lugares que para ela sequer existiam. Era uma existência cinza e enquanto não se dissolvia no ar, não deixava de ser um incômodo. Helena existia fosca. Sempre tentando colocar os sentimentos pendurados no varal, separadinhos, como que em categorias, como se existissem um sem o outro. Fazia isso freqüentemente, aproveitava os dias de sol e, quando chovia, colocava-os atrás da geladeira. Mas de nada adiantava.

Ainda se olhava profundamente no espelho quando a campainha tocou. Permanecia inerte há quase dez minutos e a campainha já havia tocado duas vezes. Agora, a terceira vez, ela havia percebido, mas sequer se movera. Só acordou quando sentiu um cheiro de queimado vindo da cozinha: esquecera-se do forno ligado! Já que não adiantou também colocar atrás da geladeira, ela colocou alguns de seus sentimentos para secar no forno e, por uma mera distração, eles queimaram.

Helena se levantou do sofá, foi até a cozinha e desligou o forno. Em seguida foi atender a porta, era um vizinho avisando-a do cheiro de queimado. Resolvido o problema, pegou uma vassoura e varreu todas as suas mentiras para fora. Recolheu-as com uma pequena pá e pôs tudo no lixo seletivo.

Agora sua existência passara de fumaça a perfume, e não carecia, nem excedia -sequer um pingo!- da proporção perfeita para inebriar qualquer um que dela se aproximasse.

domingo, 27 de janeiro de 2008

Por trás da casca de banana

Foto por Thanius Sarchis

Ele vinha andando pela rua Marechal Deodoro, com o pretexto único e simples de fotografar o que cruzasse seu caminho. Era uma tarde fria e chuvosa de pleno verão e tudo o que ele precisava fazer era bater algumas fotos para o seu curso de fotografia básico. Olhava descompromissadamente tudo a sua volta. Após alguns minutos de caminhada sem chuva, mas com a ameaça de, se deparou com uma casca de banana. Tão sozinha e tão expressiva. Tão abandonada quanto um orelhão que fora vítima de algum ato insólito de vandalismo.Um orelhão. Mas no chão de uma galeria? No chão, bem como a casca de banana caída, com a sutil diferença, porém, de chamar muito mais atenção de quem passasse perto. Do lado, um homem careca, tão solitário quanto, tornava a cena mais dramática. A mão no queixo denunciava: ele estava concentrado em algum pensamento, estava ausente. Em quê será que ele pensava? Parecia ignorar o orelhão ao seu lado.

Do segundo andar de uma galeria, ele analisava calmamente a geometria das paredes e procurava o melhor ângulo. Foi quando percebeu que um casal discutia a alguns metros dali. Sentiu uma espécie de vazio, parecia fome. Saudade. Aquele casal brigando fizera com que se lembrasse da sua namorada; mas não, claro que não lembrou das brigas. Lembrou da paz. Lembrou dos quilômetros que o separavam da sua maior paz. Quilômetros? Não foi preciso sequer um passo para que se juntasse a ela naquele exato momento. E então aproveitou a viagem para rever algumas fotografias antigas. Aquilo de eternizar um momento era fascinante.

Instantes depois percebeu onde estava realmente, fisicamente. Não estava vendo ninguém perto dele, não ouvia nada, só a voz dela, e lembrava daquela canção. Não entendia, mas era como se não estivesse em lugar algum: era assim que ele se sentia longe dela. Queria aproveitar e fotografar a saudade, depois revelar, colocar em um envelope e mandar para a casa dela. Talvez, concretizando em uma fotografia a fome que ele sentia dela, ele conseguisse se aliviar um pouco. Lá, atrás do sentimento, dos olhos, do pensamento, da fotografia. Por trás da metade pendurada no pescoço: lá estava a saudade.

Será que a pessoa que deixou aquela casca de banana no chão já sentiu tanta saudade como aquela que a fotografara sentia agora?

domingo, 20 de janeiro de 2008

Sobre as mãos...

Ela não soube me dizer o que aquilo significou. Naquele momento houve uma troca tão intensa. Duas mãos se descobriam, os dedos deslizavam uns pelos outros como se precisassem desesperadamente manter o contato. E em nenhum momento se afastavam.

Um diálogo tão harmonioso, um encaixe perfeito e algumas palavras para complementar o momento, tal qual uma cobertura de bolo. As mãos estavam frente a frente. Duas mãos direitas impossibilitando a simetria. Elas se percorriam, desde as pontas dos dedos, desde as unhas, passando pelas articulações delicadas de cada dedo, até se encaixarem. Como se não houvesse mais movimento possível, os dedos permaneceram entrelaçados por milésimos de segundo. E em seguida as mãos continuaram deslizando, depois vacilando entre o pulso e o meio do antebraço.
O movimento se repetia com pequenas alterações sem que eles percebessem.
A mesma sequência acontecia, dessa vez com uma mão sobre a outra. A harmonia estética agora existia: mão direita sobre a mão de direita, era perfeito.
A pele sentia tudo intensamente, era de uma sensibilidade nunca antes percebida naquele local.
O silêncio era melhor do que as palavras vãs que as bocas proferiam, mas elas faziam isso numa tentativa desajeitada e inoconsciente de tornar tudo mais agradável. E conseguiram. A voz agradava, era bonita e meio rouca. Além disso, saía sussurrada, pois naquela madrugada, apenas aquelas mãos não dormiam. Conversavam baixinho e trocavam experiências que as bocas ainda não tinham sido capazes de trocar.

Permaneceram assim por pouco tempo, mas na hora pareceu muito. E foi muito porque significou muito.




"Alguma coisa se desencadeara nela, enfim." Clarice Lispector

sábado, 5 de janeiro de 2008

Um ar de quê?

Ele tinha uma boca, como diria uma amiga, convidativa.
De maneira que, quando ele ficava sério e seus lábios cerrados, a parte inferior chamava mais atenção e dava vontade de morder. Convidava a mente para uma infinidade de pensamentos. Ela pensava naquela boca cantando alguma canção, beijando qualquer parte do seu corpo, sussurrando... pensava naquela boca falando e sorrindo. Era uma boca que, ao dar um sorriso simples, sem mostrar os dentes, parecia esconder certo ar de... de quê? Talvez um ar de timidez ou de falta de jeito. Mas ela sabia que, definitivamente, o mistério não era a falta de jeito. Ou era? Era uma boca que falava demais e agia pouco. Aliás, não agia. Algum motivo devia existir para isso. A boca fechada, sorrindo, escondia alguma coisa. Não falava tudo o que ela queria saber, mas ainda assim falava demais. Como era possível uma boca falar tanto, mas ao mesmo tempo isso não representar nada? Ela queria descobrir muitas coisas, mas teria que se virar sem a boca dele. Mas ela não queria tanto saber disso, queria mais era saber que gosto tinha.
(E ela me disse que sempre pensava nisso).

De acordo com uma matéria publicada na Folhaonline, o psicólogo português Freitas-Magalhães desenvolveu um estudo e revelou que "o sorriso fechado parece ser o que melhor traduz a afetividade e é também um 'sorriso de sedução'."

Agora faz sentido...