segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Coisa

Era uma casa muito modesta, com apenas dois cômodos além do banheiro. Nem cama havia. Havia era uma rede listrada enorme pendurada na parede: o casebre era semelhante às casas a beira-mar. Numa dessas tardes de verão, o sino dos ventos disposto na porta de entrada acusou que uma tempestade se aproximava. Ela preferia chamá-lo de sino da felicidade, mas naquele dia o anúncio era de algo diferente. Houve um momento em que tudo começou a se misturar, sem que ela conseguisse refletir claramente o que poderia fazer para se acalmar. E a areia da praia rapidamente ficou suspensa em uma coreografia rodopiante que poderia ser bela, se o vento não trouxesse consigo aquela coisa.


Era tão novinho e parecia manso, não vinha envolvido por nada que tivesse qualquer tipo de relação com a ruindade humana. Coitado. E coitada, que não resistiu e o abrigou. Ele era de uma pobreza invejável, como nunca antes vista por ela. E ela não sabia sua naturalidade, nem o motivo de ter aparecido logo agora, logo diante dela. E também não entendia por que as circunstâncias tinham de ser aquelas... Parecia ter andado milhas até encontrá-la. Parecia ter tido a ajuda dos ventos. Era engraçado e curioso, como parecia estar procurando exatamente por ela.


Parecia ter fome.


Ela deu um suspiro pra ele, e como quem se alimenta de suspiros, ele rapidamente percebeu que ali mesmo deveria ficar e viver, por algum tempo. Quanto tempo? O tempo que fosse preciso para que ele soubesse se valia a pena. O tempo necessário para ela, ao menos, descobrir o seu nome e entender se deveria deixá-lo viver ali com ela por mais tempo. Mas também não sabia quanto. Ela não queria deixá-lo ir embora enquanto não descobrisse porque ele existia para ela. Foi a coisa mais sedutora que aparecera para ela nos últimos anos. Completamente sem registro de coisa parecida em meio a tudo que já vivera. Ela olhava para ele, com um sorriso no canto do rosto, sem saber o que fazer daquilo tudo. O que fazer daquele fascínio que ele exercia sobre ela. De repente lhe ocorreu: como vou alimentar isso?


Ela mesma mal tinha o que comer dentro de casa. Então foi tomada por um leve desespero. Do que ele se alimentaria? Suspiro? – Ela queria verdadeiramente cuidar dele. Foi tomada por um sentimento que considerou pura humanidade e amor.


Com o tempo ela descobriria que não precisaria se preocupar com alimentação, porque ele sobrevivia forte, sem que ela conseguisse explicar a fonte de tanta energia. Ao contrário dela, que parecia cada vez mais fraca. Ela pensava; tinha medo. E o medo não era propriamente da identidade, mas era de que ele a abandonasse antes de descobrir tudo. (tudo o quê?). Às vezes, num impulso, desejava ardentemente que isso acontecesse. Porque tem certas coisas que talvez fossem melhores se permanecessem desconhecidas. E as pessoas são ingênuas de insistirem tanto em desvendar tudo, descobrir tudo. Expor. Têm certos olhares que precisam de uma mecha teimosa caindo sobre o olho direito. Porque senão... ah, senão fica tudo explícito e desinteressante. Fica tudo conhecido.


Mas ela não queria saber de nenhum detalhe dele, porque ele todo incomodava como a mecha no olho direito. E também, às vezes, não deixava a visão íntegra. Por vezes pensou em devorá-lo, de tanta fome que sentia. Não sabia de onde tirar o alimento de que precisava. Estava paralisada diante de tudo que acontecia, mas não podia abandoná-lo. Pensava sempre que não seria justo ignorá-lo. Era bonitinho... às vezes parecia puríssimo, outrora maquiavélico. Era o desconhecido. Inacreditável o poder que ele tinha sobre ela.


Teve então um domingo de manhã que ela acordou e encontrou a casa toda revirada.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Ela x Eles

Havia o desejo de uma pele tocar a outra. Às vezes isso acontecia, intencionalmente ou não, mas era como se já fossem óbvios certos contatos. Toda vez que isso fugia do óbvio, um sopro ia do fim até o começo da coluna. Parecia passar energicamente por cada vértebra, se intensificando à medida que chegava perto da nuca. Então o sopro contornava o couro cabeludo, eriçando cada fio de cabelo. Continuava, descia pelo peito e provocava uma respiração lenta e demorada. A boca seca era delicadamente umedecida com a ponta da língua. Era muito mais do que instinto animal. A superfície da pele ficava granulada. Mas era, sobretudo, um instinto. O peso do corpo era como uma frase sussurrada no ouvido. Uma frase de amor indecente, mas, ainda, de amor. E quanto a isso não havia mais dúvidas. Um amor íntimo, mútuo e uma relação degradada, no melhor sentido pensável. Aquele amor puro, que, felizmente, persiste latente e coberto com uma seda escura. E seus movimentos são tão delicados, tão discretos e secretos, que ninguém é capaz de perceber. Às vezes nem ela percebe, de tão leve a respiração. E às vezes a brisa vem; e com uma força mansa de quem quer pregar uma peça, provoca um movimento ínfimo. Então, pensa-se que ele talvez ainda viva. Mas como saber?
Inevitavelmente lhe vinha recordações de uma noite em que o óbvio não acontecera. O óbvio... Era óbvio o que estavam sentindo. Óbvio o que queriam... Até mesmo o óbvio pode surpreender.
Ele não sabia responder a muitas perguntas óbvias que mal precisariam de respostas. O toque respondia.
Havia também o medo. Ela temia, porque talvez não fosse tão forte e resistente. Era. Mas e ele? Qual deles? O que incomodava era uma dúvida apocalíptica que impedia tudo de ir acontecendo passionalmente e sem limites. E daí? Por que era preciso limites a essa altura do campeonato? (Depois do óbvio sempre vem uma pergunta.) Agora que finalmente conquistaram a liberdade... Aquela liberdade de Veríssimo ("Mas eu desconfio que a única pessoa livre, realmente livre, é a que não tem medo do ridículo.")... E se nem do ridículo eles têm medo mais, fica deveras difícil entender. Mas era uma liberdade de palavras e sílabas, não de atos. Era liberdade de vontade, de sentimento e de gosto, mas nunca de atos. Quase, mas nunca. A dúvida sempre fora a prova de fogo para qualquer passo que dessem. O que poderia acontecer? A dúvida dele lhe causava dúvidas. Medo de um prazer oculto, um prazer ridículo. Um prazer extra-ordinário.
O que ela via agora era difícil de descrever, de sentir e de ser. Queria ser, concretizar, com toda sua carne e desejo de alegria e prazer. E com o gosto. Ele também queria. Não havia dúvidas sobre a vontade do óbvio. Mas existem coisas mais importantes que ela.

Existem?

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Sobre o tempo...

Dizem que o tempo cura tudo, mas quanto tempo?
A questão é que tudo dependia do tempo para acontecer. Tudo dependia dele para não acontecer também. E não, ela não acreditava que o tempo era uma medida imaginária criada pelo homem. Os anos, os meses, os dias, as horas, os minutos, os segundos, essas medidas sim eram imaginárias, mas o tempo continuava existindo. Sendo chamado de tempo por todos, porque algum desconhecido deu esse nome. Porém sem nunca deixar de ser tempo, sem nada de imaginário. O que tem entre o agora e o momento em que o sol vai se pôr novamente chama tempo. Quanto tempo? Aí sim fica a cargo da imaginação. Então por que transformar aquele que pode ser seu melhor aliado em seu maior inimigo?
Não era suficiente para ela que lhe dissessem para esperar o tempo. Esperar Deus. Pensava desesperadamente no amanhã e em todas as possibilidades que ele podia lhe proporcionar. Mas o principal: o tempo tinha poder de cura. O tempo então era Deus? Nunca antes havia se questionado sobre isso. Esperar era então a medida de quem acreditava em um Deus e tinha fé... Não sabia esperar, não sabia acreditar em Deus, embora acreditasse. E era mesmo necessário saber? Muitas vezes se fazia necessário.
Deus sempre exigira dela paciência extrema para esperar o tempo curar todos os males. Era criança e desde sempre tinha fascínio pelo prazer da dor. A dor prazerosa de arrancar uma superfície áspera e feia. Porque todo processo de cicatrização é torturante, bizarro e ao mesmo tempo, interior. Um ato defensivo. O corpo libera substâncias que anulam a ação de corpos estranhos e prejudiciais. É um instinto de auto-preservação contra agentes agressores. E, como todo instinto, é genuinamente animal, selvagem. Em qualquer processo, se um agente agressor causa um dano em um local, imediatamente uma série de fenômenos acontecem, visando uma reorganização daquela zona. Porque ninguém, nem mesmo o próprio organismo, irracional, consegue lidar com a desorganização. Tudo funciona perfeita e irracionalmente, mas do lado de fora é diferente. E, do mesmo modo, a qualquer sinal de ação agressora, os sentidos e o coração começam a trabalhar para reparar o desequilíbrio causado. Sempre sem êxito.
Não deixava de fazer alguma coisa porque poderia se machucar - quanto maior o risco, maior a diversão. Sempre tentava arrancar a casca, quando estava quase pronto o processo de cicatrização. Como consequência, sempre sangrava inevitavelmente - sangrava, porém, sem dor. Fizera isso tantas vezes naquela mesma ferida que não havia mais dor. Só doía para cicatrizar de novo. Era sempre um cansativo recomeço. Porém não conseguia se controlar, quando estava perto de se livrar daquele estorvo, não tinha a paciência necessária exigida para esperar que fosse embora naturalmente. Para que a casca do machucado simplesmente caísse sem dor e sem alarde. Era simples: quando menos esperasse, estaria livre. Incomodava como uma cutícula avantajada implorando para ser arrancada com o dente. E isso ela também adorava fazer. Queria arrancar tudo que incomodava a força. Claro que não esperaria o tempo fazer o seu papel, poderia demorar semanas e aquilo continuaria incomodando.
Era inevitável o ato. Havia muitas feridas menores que cicatrizaram rápido, sem sequer coçar. Outras, de tanto arrancar a casca, deixaram uma cicatriz horrorosa. Mas essa ela já possuía há alguns anos.
Por que acabou se machucando tanto? Porque quis, porque foi chamada para brincar e não se protegeu. Mas para quê se proteger? Sabia perfeitamente que poderia se machucar, mas qualquer apetrecho de proteção certamente limitaria seus movimentos e ela aproveitaria menos. Não.
E foi exatamente assim, sendo conscientemente imprudente que ela adquiriu tal machucado.
A verdade é que gostava de sentir aquela dor de vez em quando. Já era parte dela e a fazia se sentir viva. Era incapaz de deixar aquela ferida virar uma simples marca, uma simples lembrança. Seria muito pouco. Ela queria o sangue e a resposta do seu corpo a ele.

quinta-feira, 31 de julho de 2008

"What a jagged little pill"

Quanto mais fixamente olhava, mais sua cabeça doía. Lá estava a tinta, o caderno e a pena, só precisava de coragem para ficar lúcida de novo. Nunca gostou de tomar comprimidos e toda vez que sentia alguma dor, simplesmente sentia e esperava a vida tratar de levar embora depois. Era como se tivesse nascido para sentir e se recusasse a cortar qualquer sentimento, qualquer sensação. Por mais penoso que fosse, às vezes, não abria mão de degustar cada dor, cada amor, cada ilusão e conseqüente desilusão. Havia momentos em que ela não queria nenhuma dose de realidade, não queria deixar de ter ilusões.
Lidava com a dor com maestria.
Mastigava o comprimido em vez de engoli-lo inteiro; lembrava-se da infância, quando, pela primeira vez, precisou tomar Dramin. Ingênua! Triturara impiedosamente o comprimido com os dentes, como se fosse uma bala, e sentira o amargo necessário para evitar o mal posterior. O enjôo de uma longa viagem. Era melhor que tomasse um comprimido e adormecesse até o destino, mas ela nunca dormia. Queria observar tudo atentamente e sentir o que fosse preciso sentir para isso. A viagem toda se passava; ela com o sabor amargo que uma azeitona fora incapaz de abrandar e com uma avidez que o comprimido fora incapaz de abater. Era só engolir. “Abrir a boca e fechar os olhos”; mas só aprenderia isso mais tarde. E ela preferia enfrentar as conseqüências da escolha. Queria não tomar o comprimido para ver o que acontecia, mas para isso precisava se sentir preparada.
A sensação era de que tomando aquilo, o enjôo era muito maior, mas não estava segura para correr o risco implicado em não tomá-lo. Seguiram-se quinze anos e ela, sem conseguir engolir de uma vez, mastigava o comprimido. Tentara até ludibriar o amargo mastigando o comprimido junto a uma barra de chocolate, mas era muito pior. O sabor contaminava o chocolate todo. Simplesmente porque não sabia a melhor maneira de ingeri-lo, acabava sofrendo por tentar evitar o sofrimento. Isso não fazia sentido para ela.
Agora, depois de tanto tempo, se recusava a tomar um mísero comprimido para curar uma dor de cabeça que lhe permitiria escrever. Era de uma teimosia sem tamanho.
"Melhor sentir do que tentar remediar". E não era pra ser remediável. Porque não achava justo que uma dor de cabeça se curasse com um comprimido, e uma dor de amor ou de saudade não. Inútil querer definir, a dor aumentaria e a dúvida também. Precisava sentir a dor da qual tinha direito. Sentir e esgotar tudo que havia para sentir dela. Estava disposta a ir até o fim e enfrentar as conseqüências. “Não quero me dopar com isso, preciso sentir para crer que estou vivendo plenamente”.
Sentiu... com o mais intenso desejo que a dor se esgotasse. E ainda sente, ainda não chegou nas últimas conseqüências. Talvez ela não estivesse preparada.
A dor se tornara latente e a tinta, seca.
"Será que é mesmo necessário ir até as últimas conseqüências?", se perguntava sempre.
E precisava mesmo do comprimido para sentir a realidade?

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Sala de espera

-Você acredita em destino?
-Não, por quê?
-É porque às vezes eu fico pensando em tudo que a gente vivencia e é impossível não pensar que não tem sentido.
-As coisas são mais fáceis para aqueles que acreditam em destino. Se alguma coisa não aconteceu, enchem logo a boca pra dizer “é porque não tinha de ser”, e pronto. São uns conformados e acomodados.
-Mas você não passa por várias coincidências que te levam a pensar que aquilo tudo vai dar em um ponto predeterminado? Por exemplo, aquela sua amiga. Você nunca parou pra pensar que talvez você esteja destinado a ficar com ela; que por mais que você se envolva com outras mulheres, e por mais que ela se envolva com outros homens, vocês acabam sempre sozinhos. Sempre conversando durante horas sobre o que significa amar uma pessoa.
-Isso é uma grande bobagem. Acreditar em destino... Você vive sua vida inteira como se folheasse uma revista de fofoca enquanto espera para ser atendido num consultório odontológico.
-É, tem razão.
-E o pior, você não percebe que no fundo está vivendo uma grande espera. Uma tortura, igual a essa que o motorzinho do dentista provoca, mas enquanto está de fora não percebe porque está distraído. É isso: uma verdadeira distração.. Por mais que viva o presente, sua expectativa está toda naquele destino que não chega. Aí você deixa um monte de coisa passar, por distração. E seu destino muda sem que você saiba ou perceba. É esperar por uma coisa que não se tem certeza que vai acontecer.
- ...
-Se existe mesmo essa coisa de destino, tenha certeza que ele muda a cada minuto. E esperar por algo que você acredita lhe ser destinado é uma tremenda estupidez.


-Próximo?